Doutora em microbiologia, a cientista compartilhou conosco sua trajetória como pesquisadora da USP
Ex-aluna de gradução do Instituto de Biociências (IB-USP) e doutora em microbiologia pelo Instituto de Ciências Biomédicas (ICB-USP) – na área de genética molecular de bactérias. A pesquisadora Natalia Pasternak ganhou ainda mais notoriedade como divulgadora científica nesta pandemia, em que parece ter se tornado um desafio ainda maior defender a ciência diante do crescimento de teorias da conspiração, fake news e movimentos anti-vacina. Conversamos sobre a pandemia atual, vacinas, sua trajetória profissional, formação e pesquisas na USP e como é ser cientista mulher com alcance na mídia.
Se preferir, ouça na íntegra a entrevista – feita por ligação telefônica – por meio do nosso podcast no Spotify, o Alumnicast.
O que podemos esperar das vacinas que vêm sendo desenvolvidas pela indústria farmacêutica para prevenção à covid-19? Qual sua expectativa em relação a quando elas estarão no mercado? Há algum método, dentre as vacinas em desenvolvimento, que seja melhor para prevenir a população a esse tipo de vírus?
Natalia Pasternak: As vacinas estão entrando agora na fase 3, que é a mais importante, pois são feitos os testes se vacina funciona num grande numero de pessoas, são vacinas igualmente promissoras. Todas elas foram bem nos testes de fase 1 e 2, em animais e em humanos, onde são feitos os testes de segurança e marcadores de imunidade, se elas estão provocando alguma resposta imune no individuo. A fase 3 é quando elas vão ser testadas em grupos grandes de pessoas – 30 mil, 50 mil pessoas. Parte recebe a vacina e parte recebe um placebo, e ao comparar esses grupos pode-se concluir se elas funcionam ou não. A gente vai ter alguns meses para observar essas respostas, e como elas estão protegendo essas pessoas vacinadas em relação ao grupo placebo. Se esse resultado for muito robusto e for estatisticamente significante e confiável a gente pode começar a planejar as campanhas de vacinação a partir do primeiro semestre do ano que vem.
Não tem nenhuma tecnologia que seja melhor que a outra, todas elas são promissoras. Há diversas tecnologias sendo testadas, desde mais antigas como simplesmente usar um vírus inativado, até tecnologias extremamente modernas como vacinas de RNA e de DNA, que nunca foram utilizadas antes no mercado. Então como a probabilidade de que alguma funcione, e outras que não, é grande, então que a gente tem como escolher. Provavelmente até o final do ano teremos respostas interessantes.
É possível que a vacina tenha que ser reaplicada anualmente na população, como com a vacina da gripe?
Natalia: Não dá para prever isso ainda. A gente não sabe quanto tempo a gente vai ter de imunidade com a vacina, nem quanto tempo de imunidade natural teremos diante desse coronavírus. Tudo indica até agora que as pessoas que pegaram a doença uma vez estão protegidas, mas não sabemos por quanto tempo e o quanto elas estão protegidas. Então tudo isso vai ter que ser avaliado ao longo desse ano. Temos até agora 7 meses de pandemia, não temos como dizer que a imunidade dura mais que isso. Não temos pessoas que foram infectadas há mais tempo que isso pra dizer. Se durar um ano teremos que vacinar anualmente, se durar dois anos, terá que ser de dois em dois. Isso a gente só vai saber com o tempo.
E essas notícias recentes que saíram em relação a possibilidade de reinfecção. Como a senhora analisa essas situações?
Natalia: Com muita tranquilidade, não é nenhum motivo pra pânico. Primeiro porque são pouquíssimos casos, que estão em analise, e apenas um caso documentado. Então primeiro a gente tem que saber se isso é exceção ou regra. E pra saber a gente tem que testar mais pessoas porque o caso confirmado como é o de Hong Kong, foi de um rapaz que teve a doença com sintomas há quatro meses e meio, recuperou-se e foi viajar à Europa. Quando voltou, ele fez o teste obrigatório no aeroporto de Hong Kong e detectaram que ele estava com o vírus. Ele não tinha percebido, estava totalmente assintomático. As duas amostras de vírus dele foram sequenciadas e elas são bem diferentes, então tudo indica que ele se reinfectou na Espanha e retornou contaminado. Como ele se reinfectou mas não teve nenhum sintoma, então o que parece ser é que a primeira infecção ativou o sistema imune dele, ele desenvolveu anticorpos ou resposta celular de linfócitos C, e essa primeira resposta imune o protegeu de desenvolver a doença numa segunda vez, então ele não ficou doente. Mediram também a quantidade de anticorpos e ele tinha uma quantidade bastante alta na segunda vez, indicando que provavelmente celular de memória fabricaram rapidamente esses anticorpos quando ele entrou em contato com o vírus novamente. Então se este tipo de caso for regra, é uma boa notícia. Na segunda vez a gente ou teria um caso muito leve da doença ou nem ficaria doente, sendo completamente assintomático. A primeira infecção nos protegeria de ficarmos doentes novamente. A preocupação é se essa reinfecção pode ser transmitida também.
Num país como o Brasil, que mantém um plateau de mortes há muitas semanas, dá pra mensurar o que pode ter sido o maior responsável por essa trágica situação? Poucas políticas públicas para incentivar o isolamento social? A falta de um titular à frente do Ministério da Saúde? Falta de conhecimento científico por parte da população?
Natalia: Eu acho que tudo isso que você falou e principalmente a falta de liderança nacional com diretrizes claras, partindo do governo federal, sobre como se deve conter a pandemia. Então as mensagens de que “quarentena não é necessária”, “máscaras são frescura”, “é só uma gripezinha”e curas milagrosas, não ajudaram nada. A falta de um ministro de saúde que fale com a população abertamente, com clareza, também contribuiu para isso. O resultado é uma população extremamente confusa, que não sabe em quem confiar, a quem ouvir e como se comportar. Temos uma população que não sabe e se faz quarentena, qual tipo, se usa máscara, se pode sair, e isso leva a normalização das muitas mortes por dia, até porque essa é a mensagem do presidente, de que “vai morrer gente mesmo, não tem o que fazer”, assim as pessoas acreditam nele e que isso não poderia ser evitado. Isso é simplesmente mentira, nós temos o que fazer e nós não fizemos.
Diante de um isolamento social com índices baixos, reabertura de shoppings e bares antes da hora, existe alguma experiência que se pode levar diante desse tipo de pandemia? Por exemplo, o uso de máscaras vem se comprovando eficaz.
Natalia: Certamente. Tem muitas lições que a gente pode tirar desse isolamento social mal feito. Primeiro que o isolamento pela metade é muito prejudicial para a sociedade pois ele exaure as pessoas e não mostra resultado. Então as pessoas ficam exaustas, frustradas, angustiadas. Se esses muitos meses de quarentena tivessem sido condensados em dois meses de uma boa quarentena, com sérias restrições, teria dado mais resultado e não teria frustrado a população. A segunda mensagem passa pelos bons hábitos de higiene das mãos e de etiqueta em público, cuidado com o compartilhamento de utensílios, e uso de máscara quando você sabe que está doente. Esses são hábitos que a gente poderia levar daqui pra frente, como o novo normal que as pessoas tanto falam, porque vão ajudar a diminuir a incidência de outras doenças. Ninguém precisa deixar de ter uma vida normal quando for razoável poder sair de novo, ir a bares e restaurantes, mas esses cuidados que a gente aprendeu com a pandemia podem nos ajudar diante de outras doenças infecciosas.
O que as pesquisas científicas têm provado atualmente sobre os remédios para os quadros mais graves de covid-19? A dexametasona, por exemplo, mostrou alguma eficácia?
Natalia: A dexametosona mostrou uma redução de mortalidade quando utilizada em ambiente hospitalar, como todo corticóide deve ser utilizado, e não é nenhum milagre ou pílula milagrosa, é importante deixar isso claro. O que a dexametasona faz, como um bom corticoide, é ser um imunossupressor e anti-inflamatório. Quando utilizado em casos graves de covid-19, diminuiu a mortalidade. Então é um remédio que ajuda, mas não vai mudar completamente o panorama dessa situação.
Em tempos de fake news e crença em teorias da conspiração, aumentou o desafio de ser divulgadora científica no Brasil? Como é ser cientista mulher com alcance na mídia, enfrenta algum tipo de machismo?
Natalia: Aumentou muito o desafio. Eu acho que como comunicadora de ciência, eu nunca trabalhei tanto. E eu tenho um papel muito interessante porque eu estou dos dois lados do balcão. Continuo ativa como cientista, participando de um grupo de pesquisa de vacinas no ICB-USP e a maior parte do meu trabalho se concentra com comunicação da ciência, principalmente essa pautada em políticas públicas baseadas em evidências. O que mais nós estamos vendo na pandemia são políticas públicas baseadas em achismo ou ideologia política, então diante disso meu trabalho com certeza quadruplicou. E é muito desafiador comunicar ciência quando o governo faz o favor de ser anti-ciência e de atrapalhar toda essa comunicação. Quando isso vem de cima, do governo federal e ministério da saúde, certamente o desafio é muito maior.
Quanto à ser mulher é muito curioso porque ter uma mulher comunicando a ciência é uma situação que atrai mais machismo do que ser cientista em si. Na minha vivência, anedótica, ao menos, já que isso é muito pessoal. Na Academia, enquanto trabalho só como cientista, nunca sofro preconceito por ser mulher. Já no trabalho como comunicadora, esse preconceito aparece em comentários que chegam a ser extremamente engraçados, quando comparo com os comentários que meus colegas homens recebem. Eu recebo comentários no sentido de ser muito brava, sem sorrisos. Meus colegas homens cientistas não estão sempre sorrindo, mas jamais ouvem esse tipo de comentário. Ou que eu não sei me maquiar, repito roupas, ou seja, são comentários hilários e que não acontecem com meus amigos homens comunicadores de ciência. Isso da mulher brava vem muito das pessoas não estarem acostumadas a ver uma mulher assertiva, sem medo de falar o que pensa, que não se deixa intimidar, e querem aquela mulher com cara de fofa de comercial de margarina. Isso poderia servir para a sociedade aprender que as mulheres não estão mais dispostas a cumprir esse papel.
Poderia falar sobre o Instituto Questão de Ciência? Quais é sua atuação e objetivos?
Natalia: Ele foi criado por mim e mais três fundadores que são Marcelo Yamashita (diretor do Instituto de Física Teórica, da UNESP), Paulo Almeida (Psicólogo, advogado, doutorando em políticas públicas de Universidade) e o Carlos Orsi (jornalista de ciência, dos mais experientes do país, criou o caderno de ciência online do Estadão). Nós 4, há um ano e meio, criamos o Instituto Questão de Ciência com o objetivo de fomentar políticas públicas baseadas em evidências científicas, tanto junto a instâncias de governo, aconselhando e cobrando dessas instâncias que as políticas públicas não sejam baseadas em achismos e ideologia mas sim em ciência, e comunicando para a sociedade a importância de que as políticas públicas sejam feitas assim. E de que decisões individuais dos cidadãos também acabem sendo baseadas no que sabemos de ciência, sem que se perceba, como vacinação do filho, qual produto compro no mercado etc. Tudo isso é permeado pelo que se sabe de ciência. A gente se preocupa em comunicar a beleza da ciência, abelhas polinizadoras, buraco negro, o que seja, tudo isso é fantástico e é um trabalho que precisa acontecer, mas não tinha ninguém no Brasil fazendo essa comunicação que impacta decisões pessoais cotidianas da população. Pra isso nós criamos o IQC, sendo que o tipo de comunicação que fazemos é mais combativa e informativa, focada em decisões que precisam ser tomada pelas pessoas, que protejam tanto a saúde como o bolso dos cidadãos.
Sua família foi uma das maiores doadoras do programa USP Vida, de fomento à pesquisa científica diante da pandemia de coronavírus. Atualmente qual a importância da doação de ex-alunos e outras pessoas físicas e jurídicas para fomentar a pesquisa científica no país?
Natalia: É algo que a gente precisa construir, essa tradição de filantropia para a ciência, não existe no Brasil. Muito menos a tradição da doação do ex-aluno, eu vejo isso com mais frequência na Escola Politécnica e na FEA mas não nos outros institutos da USP. E acho que realmente precisamos levar isso mais a sério. É muito comum nas universidade americanas e europeias, as doações dos ex-alunos, afinal é nossa alma mater, lugar que nos formou e permitiu que tivéssemos algum sucesso na vida a ponto de nos possibilitar a fazer doações. É uma forma de gratidão e de manter essas instituições funcionando para que possam formar outras pessoas. E a própria filantropia de ciência mesmo, que sejam doações feitas por pessoas que não têm formação naquela Universidade, sem ligação afetiva de ter sido aluno, mas que entendam a importância dela, e que estejam dispostos a fazer filantropia para a ciência da mesma maneira que é comum fazer doações pra arte, esportes etc. A ciência parece ficar fora do radar das pessoas que podem doar.
Quais aspectos, ferramentas ou conhecimentos desenvolvidos, você considera que foram mais importantes na sua época de aluna da USP? Seja na graduação ou doutorado.
Natalia: Eu acho que na graduação foi muito mais uma vivência universitária de estar cercado por conhecimento, de poder escolher as matérias que cursar, não só no seu instituto mas em outros, movida simplesmente pela curiosidade, sem saber ainda o que fazer da vida profissionalmente. Eu acho que isso pode ser mais explorado e eu acredito que o nosso modelo de ensino de Universidade não é o melhor, eu gosto muito mais do modelo americano, onde você tem essa parte da vivência universitária antes mesmo de escolher uma carreira definitiva, isso enriquece muito a experiência do aluno, e lhe dá mais bagagem para ele direcionar depois.
Na pós-graduação eu acho que tive muita sorte de cair num laboratório, onde meu orientador, Beny Spira (da Microbiologia do ICB) era sempre muito presente e muito preocupado em ensinar os alunos a pensar, muito mais do que ensinar técnicas de biologia molecular. Então a gente aprendeu todas as técnicas de biologia molecular, certamente – meu doutorado foi em genética de bactérias – mas a grande preocupação do meu orientador era que a gente aprendesse a pensar como cientistas. Ele criou na época em que eu estava no doutorado, um curso de pós chamado Ciência e Pseudociência, onde ele queria justamente ensinar os alunos dele mas também atrair alunos de outras áreas como jornalismo, história, filosofia, várias áreas do conhecimento, e o curso foi feito para ensinar a pensar de forma crítica e racional, a ter pensamento científico e entender por que isso é importante para o exercício da cidadania. Acho que isso que foi o que de mais importante tive na pós.
Para conhecer o Instituto Questão de Ciência, acesse o site https://iqc.org.br
Reportagem: Rodrigo Rosa